Retalhos da Minha Infância
Histórias que vivi e de que ainda me lembro.

sábado, 8 de junho de 2013

O entêrro das bonecas

Nossa avó paterna, sabia fazer, como ninguém, lindas bonecas de pano.
Eram diferentes de todas que existem por aí hoje em dia, pois eram cópias perfeitas de uma criança: isto é, tinham mãos e pés perfeitos, com  os dedinhos separados, cada um com seu tamanho e também ruguinhas e unhas demarcadas. O rosto delas era lindo, com as entradas dos olhos e a saliência perfeita do nariz e boca com os lábios demarcados. Tinham também joelhos e cotovelos, como se fossem naturais. O cabelo era feito de lã de ovelha, bem penteado e transformado em cachos. O enchimento também era de lã de ovelha. Todas eram bem torneadas e pintadas, parecendo com meninos ou meninas de verdade. Junto com elas, sempre vinha  um enxoval de roupinhas.
Vovó paterna, gastava suas horas de lazer de um ano inteiro, confeccionando duas bonecas que nos presenteava no Natal, pois éramos suas únicas netas.
Já tínhamos uma coleção de bonecas de pano, mas não estávamos satisfeitas. Nosso desejo era ter bonecas de loja, feitas naquela época de louça ou celuloide.
No Natal do ano em que tínhamos doze e onze anos, nossa avó nos trouxe, como sempre, duas bonecas de pano, as mais lindas de todas. Disse que estas eram as últimas que tinha feito para nós, pois já estávamos bem mocinhas e já tínhamos uma coleção delas. Falou que nestas, ela caprichou como nunca, que eram as mais perfeitas possíveis, que as guardássemos de lembrança para nunca esquecer da vovó.
Naquela época, estávamos na fase de brincar de cemitério, de fazer um entêrro, imitando padre ou pastor, fazer covas, enterrar objetos simbolizando pessoas, depois fazer pequenas coroas de flores e levar todos os dias, nas sepulturas do nosso cemitério de brinquedo. Este cemitério, ficava num campo bem longe de casa, nas terras de propriedade de nosso vizinho, onde havia uma pequena colina e uma figueira. Nossos pais nunca iam lá.
Resolvemos enterrar estas bonecas. Preparamos um esquife para cada uma, feito de caixote, forrado com papel. Preparamos buquês e coroas de flores e fomos lá enterrá-las com uma bela cerimônia. Havíamos aprendido a fazer coroas com nossa avó, que sempre quando falecia algum amigo ou parente, fazia ela mesma, lindas coroas. As nossas fazíamos no modo miniatura.
Todos os dias, por um bom tempo, voltávamos lá para levar novas flores ou simplesmente visitar nossos "mortos".
Nossa mãe, como não viu mais as bonecas, começou a perguntar por elas.
Lá em nossa casa, tínhamos um sótão muito grande e num canto dele, era nosso local de brincar, onde estavam  nossos brinquedos, onde nos divertíamos em dias de chuva.  Dizíamos para a mãe que as bonecas estavam lá no sótão, pois sabíamos que era muito raro a mãe ir lá.
O tempo foi passando  e ela cada vez nos questionando mais pelas bonecas, já que não nos via com elas.
Um dia, querendo mostrá-las para alguma visita, ela pediu para que as buscássemos no sótão. Então tivemos que mentir, dizendo que já a tempo não as encontrávamos mais. Ela empreendeu uma busca por toda casa, pelos galpões, estrebarias, por toda parte. Perguntou para os vizinhos, cujas filhas brincavam conosco, se elas não as haviam levado. As vizinhas, nossas duas amigas, eram nossas cúmplices na brincadeira, sabiam que não podiam contar nada a ninguém.
Havia algumas pessoas que moravam em propriedades vizinhas, atrás das terras de nosso pai, e para encurtar caminho para chegar na vila, atalhavam por nossas terras, passando bem ao lado de nossa casa. Então nossa mãe também perguntou para estes, se por acaso os filhos deles não teriam levado nossas bonecas. Ela disse que daria outras bonecas em troca, pois estas eram de extrema importância para nós e para nossa avó.
Mas, tudo em vão! As bonecas nunca mais apareceram. E nós, sabíamos bem porquê!
Passados alguns anos, minha irmã e eu resolvemos desenterrá-las. Tarde demais! Elas já estavam podres e resolvemos deixar assim mesmo e nada contar.
Nossa avó nunca soube  desta nossa arte. Sempre que ela vinha lá em casa e perguntava pelas bonecas, nós inventávamos uma desculpa, desta vez com ordem de nossa mãe, para que ela não soubesse que nossas lindas bonecas haviam desaparecido.
Depois de muitos anos, já casadas, minha irmã resolveu um dia, contar a verdadeira história para nossos pais.
Nossa mãe ficou tão brava e incomodada, que quase ainda nos aplicou uma surra. Ela pediu para continuarmos com este segredo, para que a vovó não ficasse sabendo disso.
E ela nunca soube desta história!